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alberto lapa

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CARREGADOR DE PIANOS SERRA ACIMA E DEMAIS UTOPIAS DE SOPRO SERRA ABAIXO OU CALCETEIRO DE NUVENS ENQUANTO LUZ HOUVER E HOUVER PERNAS A ABRIR

terça-feira, 22 de agosto de 2006

IDEIA DE HISTÓRIA A HAVER QUANDO PARA TANTO HOUVER HISTÓRIA

Imaginemos este país daqui a cinquenta anos. Nele se instalou, como muito ameaçavam os oráculos bolsistas, a bancarrota. Evaporaram-se as reservas de ouro, desmantelou-se a balança de pagamentos por via de pesos em excesso no prato caloteiro, hipotecou-se grande parte do património territorial, e cedeu-se o resto contra promessas de amparo no restabelecimento das contas. E, como é sintomático nestes apertos, se sugaram como último recurso as poupanças dos contribuintes, o pecúlio acumulado que garantiria as reformas e o normal tratamento das mazelas correlativas. não dinheiro para ninguém. Nem um cêntimo. Secaram todas as torneiras de fora e de dentro, para dentro e para fora.
A anarquia implantou-se. Ninguém manda em ninguém. E ninguém a ninguém conseguirá impor obediência e respeito. Sequer a si próprio. Foi o apogeu e o fim da corrupção, considerando que em pouco tempo se desfez em fumo tudo o que fosse material a corromper. Não andam carros nas estradas porque não há combustível. E é escusado chamar ambulâncias por semelhante motivo. O tempo médio de esperança de vida desceu para quarenta anos. Os mortos dormem na rua. Nunca a fartura foi tanta para as aves de rapina. E quanto aos grandes donos de quanto se via e não via, zarparam nos seus veleiros ou voaram em balões publicitários para uma estranja longérrima. Talvez na Lua ou em Marte, porquanto na Terra, pela primeira vez na história, parece existir consonância: tudo tão mal como tudo.
Este país, e não só este, parou. Não há trabalho para ninguém. Nem uma loja de porta aberta. Nada que se coma ou beba, a não ser água e sem a potabilidade assegurada. A agricultura tinha definhado anos antes, por falta de rega política, e a infinitude de campos de golfe em que se preferiu transformá-la não dá hoje de comer a quem quer que seja. A construção civil ficou-se pelos andaimes. Há milhões de casas só habitadas por ratos, ou pelos seus predadores, gente incluída. Que é muito raro ver gente à luz do dia, acrescente-se. É perigoso mostrar vida onde só a morte campeia. E há por aí quem se alimente de carne humana, recolhida de noite e de noite devorada até às falangetas dos dedos mínimos dos pés.
E imaginemos agora uma cidade. Pode ser a capital. É lá que decorre esta história verídica daqui a cinquenta anos. Ou menos. Nela hão-de fazer o seu papel alguns dos seus habitantes, em número a reduzir-se dia a dia. Entes que foram quadros de grandes empreendimentos e se viram apeados como toda a gente, médicos, advogados, electricistas e serralheiros, bancários, directores comerciais, varredores, jornalistas e ardinas, vendedores de lotaria, desportistas, chulos, condutores de autocarros e comboios, desportistas, escritores, poetas e vagabundos, bêbedos, abstémios, polícias, militares, ministros. Todos eles virados do avesso e despejados em plena rua. Meros sobreviventes num tipo específico de guerra suja sem perdedores nem ganhadores que não se vejam a rastejar. Todos iguais, enfim, mas a um nível mais baixo que os antípodas do lugar onde estejam.

“Napoleão Bonaparte nunca ouviu falar bem ou mal de mim. Mas eu já ouvi falar dele, e nem sempre bem”―, diz um dos sentados lá atrás, com uma venda de sola a recompor-lhe a vazadura, à facada, do olho esquerdo, qual pirata sem direito a óculos pagos pela previdência por nunca ter descontado sobre a roubalheira do ofício.
“A Josefina também não era flor que se cheirasse”―replica um outro, também lá metido na sombra, a roer um caroço de pêssego achado há dois dias, por sua enorme fortuna.
“Só se ela tivesse sabonetes como há hoje. Ou como havia…”― diz um terceiro entre os enroscados na treva, tão mordaz como a fome diante de bocas audíveis e visíveis na mastigação.
Junto da fogueira, à boca daquela espécie de gruta urbana, a cave de uma dessas tantas construções embargadas por se lhes empedernir a liquidez, estão de cócoras os dois últimos a juntar-se à causa única da sobrevivência a qualquer preço. Ao lado ou em frente e por detrás, há um ror de outras casas por acabar, e outras caves, outros grupos sem outro abrigo onde fingir algum conforto ao longo do rigor da noite em queda livre sobre eles. E há as irreprimíveis cenas de pancadaria rija entre os vários bandos de utentes, por questões relativas às estremas dos respectivos condomínios, na maior parte das situações. Bastará a casual proximidade de duas matilhas diferentes, embora similares em tudo, para que o sílex faça saltar a chispa e a explosão ganhe assento privilegiado à mesa real. Tomai lugar e descarregai quanto houver a descarregar neste fastio da vida.
E tendo em conta que a veracidade deste esboço de história também só se comprovará, ou desmentirá, daqui a cinquenta anos, o melhor mesmo, atendendo ao adiantado da hora, é deixá-la a fermentar, até que as rachas na massa digam que a dita está lêveda e já será tempo de a levar ao forno. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Amen.

quarta-feira, 16 de agosto de 2006

COM GUIA DE TRANSPORTE E ATESTADO DE GARANTIA

Cada dia que passe, é mais um dia vivido. E cada dia vivido, é menos um dia a viver, como se verá nas contas finais. Contas essas que nem chegarão a ser feitas por falta de tempo. Não é necessário um grande conhecimento de matemática para obter, sem estranheza, o resultado desta adição-subtracção contínua, continuada, continuável, enquanto por cá formos caminhando em direcção a nenhures. Porque há-de ser nenhures o que nos espera no fim da linha. E estando lá, seja lá onde for, não é por cá que estaremos, com toda a certeza.
Entretanto, por mero entretenimento, façamos de conta que estamos mortos, estendidos no esquife, vendo e ouvindo quem se for certificar de que morremos deveras, familiares, amigos, colegas, companheiros, vizinhos, gente que nunca imaginaríamos que de nós soubesse, gente acerca da qual nunca nos cuidámos em saber muito. E gente cujo fim principal é mostrar-se a quem esteja presente, além do morto. Gente que não presta, portanto, e ele anda aí tanta e de nós tão perto.
Este cheiro a cera é horripilante. E os crisântemos, condenados a tão macabro serviço, também não terão perfume que aspire a encómios, narizes abaixo ou acima. E muito pior que o pior pivete, é o cheiro da hipocrisia salmodiante, bendizente, curvilínea. Adaptável a qualquer ambiência onde lágrimas e cuspo se misturem em semelhante função de lubrificar emoções.
E é pena que, estando onde estamos, estando como estamos, deitados de costas e com as biqueiras dos sapatos tornadas ponto de mira, sem tremeluzir uma pestana, não possamos deslocar-nos até à secção das anedotas, na rua. Ou até à tasca mais próxima a beber um copo.
A morte, cá pela nossa banda, tem o seu quê de folclórico. Para quem fique, é claro. Para quem vá, tanto se lhe dá.

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

CRÓNICA MAL ALINHAVADA SOBRE A LEI DAS COINCIDÊNCIAS

Era uma cidade tão grande num país tão pequenino, que as fronteiras do país coincidiam com o perímetro da cidade. Nenhuma possibilidade haveria de alargar os limites da urbe, no futuro, como auspicioso sinal de progresso, por não haver país além dela.
A rede viária nacional resumir-se-ia ao complexo de ruas e avenidas citadinas, nem se tornando necessário manter os comboios a circular a céu aberto. Na melhor das perspectivas, desceriam ao nível abaixo do nivelamento andante, transformando-se em metropolitano a ligar entre si os bairros da metrópole, a promover a junção dos habitantes da nação. E sem haver montes e campos a amanhar, também não se faziam explorações no sector agrícola, no da pecuária, no das pescas, o que obrigava a despesas, por um lado, porque tudo se importaria do estrangeiro, mas, por outro, faria com que se poupassem milhões por não serem precisos ministros a ministrar nesses ministérios. Sobre as forças vivas de intervenção, reduziam-se a um punhado de sinaleiros à moda antiga e a outros tantos polícias de orientar turistas, já que o povoléu por nascido, ledo e manso como anhos sem perguntas, não era daqueles de causar danos à ordem pública.
Quanto ao resto, era em tudo igual a tudo: tinha maridos e mulheres, tinha filhos e escolas e colégios, tinha grandes prostitutas mediáticas e putas reles de aluguer sem quarto, ébrios intelectuais e borracholas com letras devolvidas ao banco, actrizes e actores à frente e atrás, um ou outro pintor ainda crente na arte e músicos desempregados a suar semicolcheias nas obras, mil e um maltrapilhos vagabundos a chupar sopas à borla, miseráveis larápios de alpercatas e ladrões banqueiros abancados sobre a miséria colectiva, empresários sempre a viajar em torno do globo sobre a rota da seda fiscal, arquitectos e engenheiros e correlatos empreiteiros da construção civil e demais gatunagem sem alvará nas conservatórias, políticos, juízes e advogados, carteiristas e carteiros, médicos, enfermeiros e doentes, vendedores de céu a metro e benquerenças milagreiras ao domicílio, e padres sem fé nas bênçãos que neles compensem os ardores do celibato. Tinha tudo aquilo que é de ter num país e numa cidade, ainda que coincidentes.
Segundo o olho atento dos astrólogos com banca televisiva e impostos pagos ou não, antevê-se a média distância temporal um terramoto de efeitos devastadores, o que nem será inédito, aliás. Já em seu tempo a terra tremeu nesta zona planetária, deixando-a parecida com o que se diz ter acontecido à utópica torre de Babel, milénios antes.
E o que é mais grave, a confirmar-se o vaticínio, é que marqueses com tomates, como o outro, já não há.

quarta-feira, 9 de agosto de 2006

AUDITORIA INTRAVASCULAR POR ASSUNÇÃO VOLUNTÁRIA

Só hoje me apercebi―e já lá vai uma vida inteira mal gasta a não me aperceber de tantas coisas importantes―daquele fragor contínuo que se escuta quando o vento atravessa a ramaria de um pinhal. Lembra um comboio remoto a passar num túnel. Ou o mar remansoso a certa distância de nele molhar os pés. Ou um avião incógnito sobre nuvens altas de mais para que dele temamos as bombas a tempo. Ou a nossa nudez interior, os nós do imo e a desinquietude das células cerebrais quando a mudez da noite no-las dá a ouvir.
Pude ouvi-lo, esse fragor, hoje de manhã. Perto, havia um pinhal. E o vento via-se, não se ouvia apenas, quando soprava. E ouvi o comboio que nunca mais acabava de passar. E ouvi o mar pachorrento que se espraiava aos meus pés e os não molhava. E ouvi o avião assassino e as ameaças de me fazer calar a breve prazo, tal como vem calando as crianças palestinas e suas mães e avós.
Só não me soube ouvir a nudez íntima. Talvez logo à noite, quando o fragor da ventania no pinhal me der a conhecer tantas outras coisas importantes e de que eu nunca, até hoje, me dei conta, como a de ter uma vida inteira mal gasta por não me aperceber senão de mim.

quarta-feira, 2 de agosto de 2006

DA VELHORRA TRILOGIA À PRODIGIOSA PROGRESSÃO DAS SARÇAS

Ao lado da casa arruinada, como se ainda fizesse tenção de a subtrair à malvadez atmosférica, um abeto. Árvore estrangeira, originária das américas, sem implantação que doa cá pelas nossas bandas. Assim se passasse com tudo o que desses lados aqui vem cair. Não muito longe do primo americano, pinheiros bravos e mansos pintam de verde, por enquanto, toda a cena à volta da casa em ruínas, sendo esta um sinal evidente dos tempos que aí vão, ninguém sabe para onde. Sem telhas, sem portas nem janelas, já lá não mora ninguém desde há anos. Mas vive lá gente―, chame-se-lhe assim. E faz-se lá gente.
Cá fora, à laia de aviso a quem chegue, em todo o pátio térreo que em jovem seria jardim, seringas aos montes, garrafas inteiras e partidas entre mil gumes semeados para pés descalços, um ror de embalagens esventradas de goma de mascar ao deus-dará de quem cuspa de nojo, latas de tudo e de nada, sapatos descambados cuja caminhada por ali se aquietou, papéis esborraçados, trapos descoloridos, e uma ou outra flor silvestre a dar alguma cor ao esterco reinante. E silvas, silvados e silveirões, que progridem dia a dia, hora a hora, enleando e tragando tudo o que se lhes anteponha, seja coisa, seja planta, seja animal, seja gente―, chame-se-lhe assim.
A culpa? A culpa é do abeto, está visto. Não fosse ele oriundo de onde bem se sabe, não tivesse ele transportado atrás de si tudo o que se vê, desde as latas de tudo e de nada àquele monturo de seringas, e por cá tudo bem, tudo em santa conformidade de tempo e espaço, a caminho da noite para ouvir cantar o fado, a caminho do estádio para sofrer da bola com a bola, a caminho de Fátima para comprar uns lotes de éden e até algum milagre em promoção de fim de época.
Abata-se o abeto. Ou abata-se o hábito de importar tudo o que se nos anteponha com origem onde se sabe, seja traste, seja erva, seja bicho, seja gente―, chame-se-lhe assim.

terça-feira, 1 de agosto de 2006

AO SOL POENTE QUANDO O DIA MAL COMEÇA A AMANHECER

Seis horas da manhã. O sol ainda está longe de nascer por cá. E não só por cá: quantas crianças mais não terão perdido, esta noite, o sagrado direito de brincar, correr, saltitar, cabriolar, jogar, por gentileza das bombas sionistas? Quantas mulheres se esqueceram de vez do que é sorrir, amamentar, beijar, embalar? Quantos velhos já não tornarão a sentar-se, ao cair da tarde, sobre a recordação de tempos felizes que também teriam vivido e dado a viver? Quantos homens de bem como outros quaisquer, jovens, quase crianças também, não caíram à beira da estrada que mereceriam percorrer em liberdade e não com armas na mão? E quantos cobardolas, como eu, não continuarão instalados em frente da televisão, bebendo cola e mascando pastilha elástica, ou dando peidinhos e rindo, porque o importante ainda é ter de que rir e especular em prol da salvação da humanidade?
Mentiroso será quem disser que o sol, quando nasce, é para todos.