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alberto lapa

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segunda-feira, 30 de junho de 2008

ENSAIO DE ASAS EM PROL DA CONQUISTA DO CÉU EM TERRA A PINTAR CLÉRIGOS

Comece-se o itinerário discursivo, como sempre, pela tela. Ao alto, no cavalete. Gélida. Nua. Seja qual for a temperatura ambiental, no pino deste solstício ou do outro, nos equinócios, nas estações intermédias de que fazem fronteira por convenção, tanto em zonas tórridas como entroviscadas. Ou seja ainda muda, a tela. Tal qual a assombração de qualquer tela em branco, em qualquer cavalete, num qualquer ponto do cosmos onde a prosápia tenha voz e residência. Tela de algodão, a melhor, de linhagem impoluta na lisura, sem nódulos aqui ou ali por acção de fios quebrados no fabrico, e engradada a preceito, sem que o esforço de a ver bem esticada a comprometa e leve a rebentar junto aos pregos laterais de fixação. As dimensões próprias, proporcionais, para retrato de compleição já respeitável, em corpo inteiro. O retrato de alguém importante, ainda que mero espantalho na semeadura em volta, tendo em atenção a prevalência da passarada vadia e a perene tentação de apenas debicar em seara de outrem.
Na mesa de apoio, a ferramenta. Tudo muito limpo e alinhado, como é de lei. Pincéis múltiplos, grossos, finos, cortados, longos. Espátulas de diversificados formatos e funções à espera. Bisnagas, contorcidas e a estrear, com todas as tonalidades do espectro personalizado pela prática de muitos lustros de arreganho aquém convicção. Aguarrás e mais diluentes, vernizes, secantes, em seus potes de improviso, longe dos tratados mentores. Trapos de paupérrima catadura, e no entanto prestimosos, em chegando a hora. E ainda o tento, atento, encostado à mesa, pronto a sobrevoar e a pousar na obra, para que a mão lá não pouse e se esborrate ao esborratá-la.
No estirador, ao fundo, dormitam sem pressa nenhuma os primeiros esboços arriscados ao vivo. E, talvez por isso, apesar de leves, lestos e até corajosos, ainda um tanto imprecisos, perante o rigor exigível por quem fez avançar a encomenda e esperará resultados. Novos esboços se farão, se necessário. E algumas fotografias, porque não? No tempo dos grandes mestres retratistas, reconhece quem sabe e mais admira, nem nas perspectivações alquimistas se pressuporia a existência, um dia, de máquinas fotográficas. Hoje, todavia, a história é outra, outra a moral condicionante do torcicolo de quem desafie a posteridade ao posar, outro o procedimento na abordagem (com hipótese de alguns truques menos límpidos nesse ataque) e na consecução do retrato.
Indispensável, entretanto, é ter acesso, invadir, entranhar e auscultar quanto possível o imo de quem se queira retratar. Arrancar-lhe risos, imprecações, sustos, arrepios, cepticismo. Fazê-lo ser, de facto, quem seja, e não quem pareça ou pretenda. E os olhos hão-de tornar-se em postigo por onde se espreite quem lá de dentro, desconfiado, espreite também quem, sem vergonha, o venha espreitando e sondando sob o salvatério da arte de bem bisbilhotar âmagos de outrem.
Assim seja.