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alberto lapa

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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ONDE SE CONTE UMA HISTÓRIA QUE BUSQUE SER ADIVINHA ONDE JÁ SÓ FALTE DE QUÊ

Era uma vez uma palavra feia, chame-se-lhe assim. De uso não muito recomendável num qualquer momento, num qualquer lugar, perante quaisquer ouvidos, também com toda a propriedade se lhe atribuiria o rótulo de asneirola, de palavrão, ou mesmo, invocando algum rigor linguístico, de obscenidade. Para menor sacrifício às mãos da erosão das cordas vocais, entretanto, sacrifique-se antes o rigor e designe-se, como se alvitra à partida, por palavra feia. E feia, tão-só, por se saber interditada, por ter intuito verruminoso ao irromper, e não porque a semântica lhe impusesse algum aguilhão mais bicudo nos efeitos, ou porque a contextura gráfica do texto se propusesse desarmónica com ela a sobressair lá dentro, ou ainda porque a específica sonoridade da adjunção silábica resultasse menos agradável na pronúncia. Cumpre até informar, aliás, que no caso em pose se trata de um monossílabo, uma pouca de coisa nenhuma de som gutural, redondo, conciso, fácil de mais, inclusive, e por isso propenso a deslizes.
Tendo ascendência tão ancestral e tão semelhante a tantas mais, terá aparecido por a vaguear nas escrituras, como por obra do acaso, há talvez cinco ou seis séculos. E por aí se foi ficando, saltitante de boca em boca, primeiro na treva e depois às claras, e assumindo sem peias e em definitivo o formato presente. Simples, mas exacto. Toda a gente aprendeu e apreendeu, de bom grado, o então novo vocábulo, e sem guardar segredo o guardou na liquidez por debaixo da língua, pronto para saltar e atacar preconceitos e pruridos, ao mais tremelicado dos ensejos por descuido, quando esses mesmos pruridos e preconceitos teimassem em ser equipa de ataque ao bom senso.
Como substantivo paralelo de outros autorizados a circular por onde bem lhes aprouver, desde tratados científicos a novelas de cordel em versão televisiva por não se verem apodados de asneiredo do mais comezinho em imundícies —, tem consagrado o direito, no entanto, de figurar em dicionários, enciclopédias, léxicos. Ou todas as prateleiras onde se arrumem e se encham de poeira as milhentas palavras a não saber ler, a não saber ouvir, a não saber dizer. Nem a escrever.
É um monossílabo, portanto, na versão agora ao dispor. Mas quando os gládios imperialistas, como invasores, começaram a sussurrá-lo e a segredá-lo ao ouvido dos invadidos, ainda era um dissílabo a pedir trato e arreganho de oficina, o que de facto aconteceu, como já antes se disse, muitas centúrias depois. E tem primos, todos eles parecidos uns com os outros e com ele, espalhados por quantas terras e línguas foram varridas pelos mesmos gládios romanos. E também tem filhos e filhas às dezenas, aperfilhados ou bastardos e todos eles passíveis de reconhecimento por terem o nome de quem lhes deu vida no seu, um dignificante privilégio, nem mais, a mensurar.
Se nestes túrbidos tempos em avanço se promovesse um concurso de popularidade, no mundo peculiar das palavras mais vezes ensopadas na saliva que as obrigue a cair na rua, esta, apesar de minúscula e por paradoxal que se considere, estaria à frente de todas e em simultâneo por detrás de quantas dela fossem concorrentes. Mas nisso, embora à ganância observado na antes referida turbação contemporânea, bom será não mexer muito. Que ledo e quedo se finque, ou o andaço ainda ganha asas e sem contenção se propaga e chega a todos.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

ENQUANTO O TEMPO QUE FAZ FIZER TENÇÃO DE CONTINUAR A MATANÇA

Quanto mais rigoroso for o Inverno, mais velhos morrem. É a lei dos mais débeis a ceder o passo aos de vida ainda em progressão e não já em queda desamparada, sabe-se bem para onde e para quê. Vão será qualquer esforço de inverter o sentido ao andamento ou de outorgar aos calcanhares o comando das operações. Nem parar, por instantes que seja, é possível, quanto mais recuar ou mudar de direcção.
Também se pode condescender, com certo jeito, que há em armazém excesso de velhos. Então não é essa a opinião dos entendidos, quando se engalfinham acerca do gradual envelhecimento da população e da cada vez mais generosa esperança de vida? Se todavia se perguntar a um qualquer velho se ele como velho se admite na hora de içar velas e zarpar, concluir-se-á sem surpresa que nem um só marujo, entre os inquiridos, reconhece sequer um nó das artes de marear. “Velhos são os trapos”—, comentarão a meia voz de si para si.
O frio, segundo o mensurável na berlinda, enrija e conserva. Mas não passa a pele a ferro, não restaura as artroses, não desembacia a vista, não reconstrói dentes de morder a sério, não restabelece o equilíbrio entre procura e oferta do viço, vulgo presunção de o ter ainda. E nem revivifica e reedita o simples gosto de sonhar, fazer projectos, antever viagens aos confins do tempo, revisitar paixões e dores sofridas como purgação, reescrever cartas de amor sem resposta nem dinheiro para o selo, tornar na imaginação a saltar muros vizinhos e a roubar fruta, restabelecer o nexo de causalidade entre quem deveras se tenha sido e quem se quis, recuperar a crença infantil na imortalidade. O frio é o fim, aliás, da jornada pontificada por todos os passos dados em torno da sombra deitada aos pés, qual cachorro obediente ao momento de ter com que entretenha a dentuça no caçoilo.
A velhice é um anátema, qual expectativa a gorar-se antes da eclosão de coisa alguma, lamparina a apagar-se por falta de azeite, mistério a desvendar-se como lobreguidão impenetrável por sarcasmo. E aquela ideia antiga de ainda se ouvir o cuco com o advento da Primavera, ou com o séquito do Inverno de malas aviadas e em viagem até à berma de além do Outono, esse finca-pé temporal como marca a respeitar já não resulta, já não é impedimento da partida. Nem há já cucos como havia dantes, e os que houver são de aviário.