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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

ONDE SE CONTE UMA HISTÓRIA QUE BUSQUE SER ADIVINHA ONDE JÁ SÓ FALTE DE QUÊ

Era uma vez uma palavra feia, chame-se-lhe assim. De uso não muito recomendável num qualquer momento, num qualquer lugar, perante quaisquer ouvidos, também com toda a propriedade se lhe atribuiria o rótulo de asneirola, de palavrão, ou mesmo, invocando algum rigor linguístico, de obscenidade. Para menor sacrifício às mãos da erosão das cordas vocais, entretanto, sacrifique-se antes o rigor e designe-se, como se alvitra à partida, por palavra feia. E feia, tão-só, por se saber interditada, por ter intuito verruminoso ao irromper, e não porque a semântica lhe impusesse algum aguilhão mais bicudo nos efeitos, ou porque a contextura gráfica do texto se propusesse desarmónica com ela a sobressair lá dentro, ou ainda porque a específica sonoridade da adjunção silábica resultasse menos agradável na pronúncia. Cumpre até informar, aliás, que no caso em pose se trata de um monossílabo, uma pouca de coisa nenhuma de som gutural, redondo, conciso, fácil de mais, inclusive, e por isso propenso a deslizes.
Tendo ascendência tão ancestral e tão semelhante a tantas mais, terá aparecido por a vaguear nas escrituras, como por obra do acaso, há talvez cinco ou seis séculos. E por aí se foi ficando, saltitante de boca em boca, primeiro na treva e depois às claras, e assumindo sem peias e em definitivo o formato presente. Simples, mas exacto. Toda a gente aprendeu e apreendeu, de bom grado, o então novo vocábulo, e sem guardar segredo o guardou na liquidez por debaixo da língua, pronto para saltar e atacar preconceitos e pruridos, ao mais tremelicado dos ensejos por descuido, quando esses mesmos pruridos e preconceitos teimassem em ser equipa de ataque ao bom senso.
Como substantivo paralelo de outros autorizados a circular por onde bem lhes aprouver, desde tratados científicos a novelas de cordel em versão televisiva por não se verem apodados de asneiredo do mais comezinho em imundícies —, tem consagrado o direito, no entanto, de figurar em dicionários, enciclopédias, léxicos. Ou todas as prateleiras onde se arrumem e se encham de poeira as milhentas palavras a não saber ler, a não saber ouvir, a não saber dizer. Nem a escrever.
É um monossílabo, portanto, na versão agora ao dispor. Mas quando os gládios imperialistas, como invasores, começaram a sussurrá-lo e a segredá-lo ao ouvido dos invadidos, ainda era um dissílabo a pedir trato e arreganho de oficina, o que de facto aconteceu, como já antes se disse, muitas centúrias depois. E tem primos, todos eles parecidos uns com os outros e com ele, espalhados por quantas terras e línguas foram varridas pelos mesmos gládios romanos. E também tem filhos e filhas às dezenas, aperfilhados ou bastardos e todos eles passíveis de reconhecimento por terem o nome de quem lhes deu vida no seu, um dignificante privilégio, nem mais, a mensurar.
Se nestes túrbidos tempos em avanço se promovesse um concurso de popularidade, no mundo peculiar das palavras mais vezes ensopadas na saliva que as obrigue a cair na rua, esta, apesar de minúscula e por paradoxal que se considere, estaria à frente de todas e em simultâneo por detrás de quantas dela fossem concorrentes. Mas nisso, embora à ganância observado na antes referida turbação contemporânea, bom será não mexer muito. Que ledo e quedo se finque, ou o andaço ainda ganha asas e sem contenção se propaga e chega a todos.