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alberto lapa

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segunda-feira, 1 de outubro de 2007

D'EÇA À PEÇA ONDE CESSA A LITERACIA E COMEÇA O CHEIRO A BOSTA

Ele seria só um daqueles magricelas de que se receava que os joelhos embatessem um no outro: desconjuntar-se-lhe-iria o esqueleto num montão de ossos sem sítio certo. A tão cofiada bigodaça, ponto de honra na arquitectura fisionómica de usar por fora, na altura, aparentava um fiel de balança sem pratos nem pesos possíveis pela clamorosa fraqueza do prumo. E as lunetas em serviço permanente, com a fina corrente prateada desde a lapela e encavalitadas num narigão de fabrico gaulês nunca declarado, eram janelas através das quais, de fora para dentro, se poderiam ver uns olhos sagazes, semicerrados por tique, ou por vício, de recorte intelectual. Mas de dentro para fora, aquilo que se via é apenas tudo o que se vê publicado na banca livreira desde há mais de cem anos.
“Nunca li nada que me informasse acerca de ele gostar muito ou pouco de andar a cavalo. Se gostasse, por aqui estava bem fornido de barrancos onde poderia cavalgar à vontade”.
A indumentária mais comum naqueles anos, tal como com os bigodes aconteceria, era imposta pela classe social respectiva e pela disponibilidade aurífera afirmada dentro dela. No caso em particular evocação a vestir por letras, primavam as cores escuras da cartola e da sobrecasaca, bem como do laçarote ao fingir-se irreverente, por contraste com a alvura do colarinho empertigado da camisa de algodão, linho ou seda; e o riscado de vertical perfeição das calças, em cinza claro e negro, com o sublinhado imperativo de polainitos de pele, carneira ou não tanto, e uns botins tão lustrosos como o cabelo empastado, à custa de brilhantina e cuspo, na ponta oposta.
“Aquele casarão, no extremo do lugar, brasonado e com uma panorâmica deslumbrante, pertenceu-lhe”.
Tem o seu quê de pôr os pêlos de pé deambular hoje por ruas onde ele deambulou também, subir e descer estes degraus de pedra que ele em seu tempo galgou, usufruir a paz e a sombra de algumas árvores mais velhorras que com toda a certeza já o refrescaram a ele, ir e voltar por carreiros sem nome, tanto então como agora, levando na memória que ele através deles se passeou, a sós consigo ou só por si acompanhado, e atirou pedras às moitas, e perseguiu lagartixas, e mordiscou hastes de feno, e roubou fruta de maior vulnerabilidade à gula que à fome, e até mijou cá do alto na pacatez de formigas operárias enfileiradas na luta e sem pausa para almoço. Quiçá, ter-se-á arriscado algum dia a arrear as calças ao ar livre, à guarda de algum penedo de olhos cegos, por motivos de ordem súbita e de melindrosa explicação sem os dedos no nariz.
“É meio preconceituoso pensar que um homem de letras não acorre aos mesmos apelos que qualquer analfabeto”.
Entre muitos milhares de páginas manuscritas, fundeadas na maré da realidade circunstancial ou na ficção pura, é possível encontrar uma personagem, não protagonista, com a qual ele não enjeitaria, nalguns pormenores, a similitude. Aliás, nesse livro um dos mais bem trabalhados até estas paragens por lá param. A tal casa brasonada, por exemplo, bem podia ser a residência dessa figura por ele tirada ao espelho. E as alusões ao luzeiro parisiense, onde morou e trabalhou, durante anos, e tanta matéria-prima literária semeou e colheu, tornam-se o mote primeiro do enredo a escalpelizar depois.
“Quantos, entre os talvez mil habitantes cá na terra, até hoje teriam tido a curiosidade de o ler?”
Nem um.
(Guiães, 26-09-2007)