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terça-feira, 22 de agosto de 2006

IDEIA DE HISTÓRIA A HAVER QUANDO PARA TANTO HOUVER HISTÓRIA

Imaginemos este país daqui a cinquenta anos. Nele se instalou, como muito ameaçavam os oráculos bolsistas, a bancarrota. Evaporaram-se as reservas de ouro, desmantelou-se a balança de pagamentos por via de pesos em excesso no prato caloteiro, hipotecou-se grande parte do património territorial, e cedeu-se o resto contra promessas de amparo no restabelecimento das contas. E, como é sintomático nestes apertos, se sugaram como último recurso as poupanças dos contribuintes, o pecúlio acumulado que garantiria as reformas e o normal tratamento das mazelas correlativas. não dinheiro para ninguém. Nem um cêntimo. Secaram todas as torneiras de fora e de dentro, para dentro e para fora.
A anarquia implantou-se. Ninguém manda em ninguém. E ninguém a ninguém conseguirá impor obediência e respeito. Sequer a si próprio. Foi o apogeu e o fim da corrupção, considerando que em pouco tempo se desfez em fumo tudo o que fosse material a corromper. Não andam carros nas estradas porque não há combustível. E é escusado chamar ambulâncias por semelhante motivo. O tempo médio de esperança de vida desceu para quarenta anos. Os mortos dormem na rua. Nunca a fartura foi tanta para as aves de rapina. E quanto aos grandes donos de quanto se via e não via, zarparam nos seus veleiros ou voaram em balões publicitários para uma estranja longérrima. Talvez na Lua ou em Marte, porquanto na Terra, pela primeira vez na história, parece existir consonância: tudo tão mal como tudo.
Este país, e não só este, parou. Não há trabalho para ninguém. Nem uma loja de porta aberta. Nada que se coma ou beba, a não ser água e sem a potabilidade assegurada. A agricultura tinha definhado anos antes, por falta de rega política, e a infinitude de campos de golfe em que se preferiu transformá-la não dá hoje de comer a quem quer que seja. A construção civil ficou-se pelos andaimes. Há milhões de casas só habitadas por ratos, ou pelos seus predadores, gente incluída. Que é muito raro ver gente à luz do dia, acrescente-se. É perigoso mostrar vida onde só a morte campeia. E há por aí quem se alimente de carne humana, recolhida de noite e de noite devorada até às falangetas dos dedos mínimos dos pés.
E imaginemos agora uma cidade. Pode ser a capital. É lá que decorre esta história verídica daqui a cinquenta anos. Ou menos. Nela hão-de fazer o seu papel alguns dos seus habitantes, em número a reduzir-se dia a dia. Entes que foram quadros de grandes empreendimentos e se viram apeados como toda a gente, médicos, advogados, electricistas e serralheiros, bancários, directores comerciais, varredores, jornalistas e ardinas, vendedores de lotaria, desportistas, chulos, condutores de autocarros e comboios, desportistas, escritores, poetas e vagabundos, bêbedos, abstémios, polícias, militares, ministros. Todos eles virados do avesso e despejados em plena rua. Meros sobreviventes num tipo específico de guerra suja sem perdedores nem ganhadores que não se vejam a rastejar. Todos iguais, enfim, mas a um nível mais baixo que os antípodas do lugar onde estejam.

“Napoleão Bonaparte nunca ouviu falar bem ou mal de mim. Mas eu já ouvi falar dele, e nem sempre bem”―, diz um dos sentados lá atrás, com uma venda de sola a recompor-lhe a vazadura, à facada, do olho esquerdo, qual pirata sem direito a óculos pagos pela previdência por nunca ter descontado sobre a roubalheira do ofício.
“A Josefina também não era flor que se cheirasse”―replica um outro, também lá metido na sombra, a roer um caroço de pêssego achado há dois dias, por sua enorme fortuna.
“Só se ela tivesse sabonetes como há hoje. Ou como havia…”― diz um terceiro entre os enroscados na treva, tão mordaz como a fome diante de bocas audíveis e visíveis na mastigação.
Junto da fogueira, à boca daquela espécie de gruta urbana, a cave de uma dessas tantas construções embargadas por se lhes empedernir a liquidez, estão de cócoras os dois últimos a juntar-se à causa única da sobrevivência a qualquer preço. Ao lado ou em frente e por detrás, há um ror de outras casas por acabar, e outras caves, outros grupos sem outro abrigo onde fingir algum conforto ao longo do rigor da noite em queda livre sobre eles. E há as irreprimíveis cenas de pancadaria rija entre os vários bandos de utentes, por questões relativas às estremas dos respectivos condomínios, na maior parte das situações. Bastará a casual proximidade de duas matilhas diferentes, embora similares em tudo, para que o sílex faça saltar a chispa e a explosão ganhe assento privilegiado à mesa real. Tomai lugar e descarregai quanto houver a descarregar neste fastio da vida.
E tendo em conta que a veracidade deste esboço de história também só se comprovará, ou desmentirá, daqui a cinquenta anos, o melhor mesmo, atendendo ao adiantado da hora, é deixá-la a fermentar, até que as rachas na massa digam que a dita está lêveda e já será tempo de a levar ao forno. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Amen.